Tertuliano de Cartago

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Tertuliano de Cartago

Por Marcos Granconato

INTRODUÇÃO:

Dentre os chamados Pais da Igreja, Tertuliano de Cartago merece destaque especial, seja como teólogo que lida com temas controvertidos como a Trindade, num tempo em que as grandes formulações teológicas estavam em fase embrionária, seja como defensor do Cristianismo, tanto diante dos hereges como em face de seus perseguidores.
Foi atuando como advogado da igreja diante das autoridades romanas que Tertuliano compôs a sua Apologia. Trata-se de uma obra prima na qual o autor revela toda a sua perspicácia, conhecimento, clareza de raciocínio e audácia. De fato, todo o talento de Tertuliano pode ser vislumbrado nesse clássico da literatura cristã antiga.
Esta monografia tem o propósito de apresentar uma breve análise da estratégia de defesa dos cristãos usada por Tertuliano na sua Apologia, considerando ainda o sentido em que seu método pode funcionar como fonte de aprendizado para os atuais defensores da fé. Na busca desse objetivo, atenção especial (porém, não exclusiva) foi dada aos seus argumentos jurídicos, uma vez que tais argumentos predominam no texto.
Assim, após um breve escorço histórico, o trabalho prossegue apresentando um comentário acerca dos erros que, segundo Tertuliano, as autoridades romanas estavam cometendo no âmbito do direito. Nesse ponto em especial, recorre-se ao parecer de estudiosos de destaque como Justo González e Philip Schaff, entre outros.
A divisão seguinte consta de uma análise crítica dos argumentos e métodos adotados pelo famoso Pai da Igreja, buscando extrair deles elementos que ajudem os cristãos modernos a fazer frente aos obstáculos que se insinuam diante da igreja nos dias atuais.
A pesquisa foi realizada a partir de fontes secundárias e primárias e sua relevância é inegável à medida que questões relativas à extensão da liberdade religiosa e eventuais confrontos entre a igreja e o estado, mesmo em nosso país, mostram no horizonte sinais de conflitos mais sérios dentro de um futuro próximo. Aprender com Tertuliano pode significar, portanto, treinamento e preparo para uma luta inevitável cujo cenário parece estar lentamente se instalando.

1. BREVE ESCORÇO HISTÓRICO
Quintus Septimius Florens Tertullianus (c. 150 – c. 220) era cartaginês. Seu pai, um militar pagão, preocupou-se em dar-lhe boa formação intelectual, inserindo-o na carreira jurídica. Tomando essa direção, Tertuliano mostrou-se sedento de saber, tanto quanto era sedento de prazeres e diversões.
Foi em Roma que o jovem africano concluiu seus estudos de direito. Foi também ali que, por volta de 195, sob condições que permanecem obscuras, abraçou a fé cristã. Sabe-se que era um jovem entregue à imoralidade e ao desregramento e que a paciência e heroísmo dos cristãos, bem como a moral do evangelho, haviam causado uma forte impressão sobre ele que, curioso, passou a ler freqüentemente a Escritura. Os detalhes, porém, de sua conversão, não chegaram até nós.

Retornando para Cartago, o douto advogado uniu-se à igreja daquela cidade, onde atuou como zeloso catequista. Nessa função permaneceu sem jamais ser investido no múnus episcopal. Ao tempo em que Tertuliano comprometeu-se ativamente com o Cristianismo, a igreja ainda era relativamente jovem, mas grande numericamente e bem estruturada. Sua adesão contribuiu para o crescimento do prestígio e da cultura cristãos, num tempo em que a nova fé era vista com antipatia e desconfiança, tanto pelas autoridades romanas como pelo povo em geral.
Sendo um homem de forte personalidade, impetuoso, de inteligência penetrante e de caráter exaltado e intransigente, Tertuliano saiu em defesa dos cristãos e da fé com uma habilidade e força notórias. Seus escritos dão mostras de seu gênio, destacando-se dentre eles a Apologia, a prescrição contra os hereges, Contra Marcião, Contra Praxéias (onde, pela primeira vez, é usada a palavra “Trindade”) e O testemunho da alma.
Tertuliano tinha uma natureza inclinada para a disciplina e o rigor ascético. Sendo casado, tratava sua esposa e as demais mulheres com severidade e rigor, o que evidencia sua preocupação com a continência. Foi esse impulso na direção de um rigorismo exacerbado que o levou, em 207, a romper com a igreja e abraçar a heresia de Montano.
Terminou em silêncio a vida do impetuoso defensor dos cristãos. Parece que teve uma velhice solitária. Como ocorrera com os católicos, também não se entendeu com os montanistas e, por isso, afastou-se deles, morrendo, finalmente, por volta do ano 220.

2. A APOLOGIA DE TERTULIANO SOB ANÁLISE
Dentre as várias obras de Tertuliano, a sua Apologia se destaca de forma especial não só por trazer revelações precisas acerca das acusações que eram feitas contra os cristãos no século 2 e da forma como tais acusações eram recebidas e processadas pelas autoridades romanas. É óbvio que foi precisamente esse cenário desfavorável à igreja, bem como a política de perseguição de Roma, estabelecida desde os dias de Trajano (98-117) que despertaram o furor do grande apologista. Porém, a referida obra ganha preeminência pela forma como revela a tenacidade com que Tertuliano defende o Cristianismo, sua clareza de argumentação, sua lógica imbatível e sua ousadia insolente diante dos perseguidores.
Na Apologia, como nos demais escritos de sua autoria, Tertuliano dá mostras de sua confiança na razão, no raciocínio lógico como instrumento de defesa da fé e de ataque contra o erro. Ele não era, como alguns o consideram, um fideísta incapaz de enxergar a relevância da lógica racional. Ao contrário, ninguém como ele usou dessa lógica para demonstrar a estultícia que subjaziam os pensamentos e práticas de seus opositores. Nesse sentido, Norman Geisler escreve: “Apesar de sua ênfase na fé, Tertuliano, como Justino e Clemente, acreditava que havia um papel importante para a razão humana na defesa da verdade da religião cristã.”
Ademais, na obra Apologia, encontra-se a marca distintiva de Tertuliano, ou seja, a adoção de uma estratégia de natureza jurídica na defesa de seus motivos. De fato, Tertuliano, dirigindo a obra especialmente ao governador romano de sua província, apresenta-se como um verdadeiro advogado, com uma retórica e um procedimento próprios do mundo jurídico de seu tempo. Na verdade, como ensina Justo L. Gonzáles, “toda a sua obra leva o selo de uma mente legal”, mas é na Apologia que vemos com cores mais vivas a indignação de um causídico que se insurge contra os erros que vê serem cometidos pelos magistrados contra o réu que representa. A. Hammann comenta:
Tertuliano, antes do fim do século 2, escreve o Apologeticum, para acusar em nome do direito o Império intolerante e perseguidor.
Não se trata mais de invocar a razão, a tolerância; o africano apela para o direito romano, a instância suprema. A hora da tolerância passou; Tertuliano reclama direitos. O jovem mestre da África conhecia Roma, acabava de tocar-lhe no ponto sensível.
É possível, portanto, detectar na obra em análise, a predominância do chamado argumento judicial. Pelo menos oito vezes Tertuliano expõe os erros dos magistrados a quem se dirige, sendo a maioria deles de natureza jurídica. Ao fazer referência a tais erros, o grande defensor do Cristianismo prova que os juízes dos cristãos estavam agindo em desconformidade com os princípios mais elementares do direito.
Primeiro, argumenta o teólogo africano, não há nada mais injusto do que odiar uma coisa da qual nada se sabe. Aqui Tertuliano parte do pressuposto de que tanto os acusadores dos cristãos como os juízes que os condenavam ignoravam em que, de fato, consistia aquela religião. Aliás, prossegue o apologista, seu ódio era exatamente devido à sua ignorância, pois a análise dos fatos revelava que um grande número de inimigos do Cristianismo deixou de sê-lo tão logo o conheceu melhor e até passou a professar o que antes tinha odiado.
O segundo erro cometido pelos magistrados, conforme o entender do teólogo cartaginês, consistia em, desprezando a lei romana, proibir os cristãos de pronunciar qualquer frase em sua defesa. No sistema jurídico-processual então em vigor, qualquer acusado podia falar ou contratar advogados para demonstrar sua inocência. Os cristãos, porém, eram cerceados em seu direito de defesa, sendo-lhes negada a oportunidade de oferecer uma resposta que, porventura, ajudasse o juiz a pronunciar uma decisão correta. Segundo Tertuliano, era absurdo que nem mesmo uma investigação das acusações fosse feita, bastando aos julgadores o simples assentimento do réu quando inquirido se era ou não cristão.
As duas falhas dos magistrados acima expostas talvez se constituam na razão principal que moveu Tertuliano a compor a Apologia. Ao fecharem os ouvidos tanto para as informações como para as razões de defesa, as autoridades julgavam sem qualquer elemento que as conduzisse a uma conclusão correta. É, portanto, precisamente esses dois elementos (informações e razões de defesa) que Tertuliano se dispôs a lhes fornecer, mostrando quem de fato eram os cristãos. Que essa tenha sido a tônica da Apologia parece ser o entender de

Earle Cairns:
No Apologeticum, endereçado ao governador romano de sua província, [Tertuliano] nega as antigas acusações feitas contra os cristãos, argumentando serem estes leais cidadãos do Império […] Bem coerente com sua educação jurídica, argumenta que o Estado está perseguindo a Igreja à base de dúbios motivos legais, uma vez que as reuniões, as doutrinas e a moral dos cristãos são superiores às de seus vizinhos pagãos (grifo nosso).

O terceiro dentre os erros jurídicos elencados por Tertuliano é a já mencionada política de perseguição de Trajano que vigorava havia cerca de cem anos. A contradição dessa política, na óptica do advogado do Cristianismo, era que deixava os cristãos em paz ao mesmo tempo em que os punia. Ademais, como poderiam condenar alguém contra quem nem mesmo buscas tinham sido ordenadas? Seria certo executar um homem que jamais deu motivos para que o poder público saísse em seu encalço? Que estranhos criminosos eram esses que não deveriam jamais ser procurados, mas sempre punidos se, por acaso, chegassem aos tribunais?
No entender de Justo González, a crítica da Tertuliano aqui não procede. Isso porque, conforme o parecer do ilustre historiador, o método de Trajano era possível de se compreender quando considerado a partir do ponto de vista político. Diz ele:
Ora, ainda que a decisão de Trajano não tivesse sentido lógico, tinha um sentido político. Trajano compreendia o que Plínio dizia: que os cristãos, pelo simples fato de serem cristãos, não cometiam crime algum contra a sociedade ou contra o Estado. Portanto, os recursos do Estado deviam ser empregados em assuntos mais urgentes do que a procura dos cristãos. Mas, uma vez que um cristão era delatado e trazido diante dos tribunais imperiais, era necessário obrigá-lo a adorar aos deuses do império ou castigá-lo. De outro modo, os tribunais imperiais perderiam toda a autoridade.
Portanto, os cristãos eram castigados, não por algum crime que supostamente haviam cometido antes de serem delatados, mas por seu crime diante dos tribunais. Esse delito tinha de ser castigado, em primeiro lugar, porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e, em segundo lugar, porque, ao negarem a adorar o imperador, os cristãos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebelião contra a autoridade imperial. Com efeito, o culto ao imperador era um dos vínculos que uniam o Império, e negar-se em público a render esse culto equivalia a romper esse vínculo.
A justificativa lógica e facilmente compreensível apresentada na longa citação acima encerra uma linha de pensamento que Tertuliano deliberadamente evitou sequer mencionar em sua Apologia. Evidentemente, agiu assim porque queria desviar-se de qualquer idéia que militasse contra os seus interesses. Como advogado, cuidou para conduzir o raciocínio numa direção que favorecesse exclusivamente aqueles a quem defendia. Aqui também é possível ver a perspicácia de Tertuliano.
A aplicação da tortura aos cristãos se constituía no quarto erro cometido pelas autoridades romanas no entender de Tertuliano. Não que ele se opusesse à tortura em si, mas sim ao fato de ela ser aplicada para que o réu negasse o crime. Ora, em todos os outros casos os acusados eram torturados para confessar delitos. No caso dos cristãos ocorria justamente o contrário. Tertuliano prossegue dizendo que se o crime se constituía em ser cristão não era necessário torturar aqueles que confessavam tal “crime”. De fato, sendo a tortura aplicada para produzir a confissão, não há porque aplicá-la a réus já confessos.
Essa prática, conforme demonstrado na Apologia refletia um outro erro jurídico: o Estado, no caso dos cristãos, não se opunha a nenhuma espécie de crime, mas simplesmente a um nome. A injustiça que caracteriza essa prática já havia sido desmascarada por Justino Mártir (m. 165), em sua Primeira apologia dirigida ao imperador Antonino Pio. Tertuliano seguiu a mesma argumentação. Considerando que nenhum crime jamais pôde ser atribuído aos cristãos, era evidente que eles eram perseguidos tão-somente porque eram designados com uma palavra que lembrava o nome de seu fundador, tão odiado pelo mundo.
Assim, Tertuliano demonstra que conhece todos os recursos não só da retórica, mas também da sofística. Como um advogado inteligente, ele salta de uma teoria a outra, fugindo de qualquer ângulo de análise que não lhe seja favorável, conduzindo a argumentação para bem longe de qualquer fato ou fator que não atenda aos interesses de sua causa.
O próximo erro que Tertuliano aponta relaciona-se não com o processo judicial, mas com o processo legislativo. Ele diz que as autoridades romanas, no trato com o Cristianismo, usavam de arbitrariedade e, baseando-se em mera opinião prévia, decidiam o que deveria ser considerado legal, não avaliando se o objeto de suas considerações era maligno ou benigno. Para o cartaginês, a norma que punha a religião cristã na ilegalidade surgira sem conhecimento dos fatos e sem propósito algum, já que não protegia nenhum valor. Além disso, se o Cristianismo era considerado uma forma nova de violação de normas antigas, essas mesmas normas deveriam ser revistas como eram revistas constantemente inúmeras leis do Império e como foram revistas e alteradas as leis fixadas mesmo pelos maiores filósofos do direito.
É por conter argumentos dessa natureza que, aderindo à opinião da totalidade dos pesquisadores, Roger Olson se refere à Apologia como uma obra que “contém argumentos de linguagem extremamente jurídica contra os perseguidores do Cristianismo e em favor da inocência do Cristianismo.” Também considerando esse aspecto da argumentação de Tertuliano, Philip Schaff afirma:
Nessa obra, Tertuliano entusiástica e triunfantemente repele os ataques dos pagãos contra a nova religião e reivindica para ela tolerância legal e igualdade de direitos com as demais seitas do império romano. É o primeiro apelo em prol da liberdade religiosa como um direito inalienável que Deus deu a todo homem e o qual o governo civil, em seu próprio interesse, deveria não somente tolerar, mas respeitar e proteger.
Os dois últimos erros apontados por Tertuliano contra os magistrados em sua Apologia não são propriamente desvios de natureza jurídica. Um deles é o desprezo que revelavam pela história. Esta testificava que os maus governantes sempre se levantaram contra o Cristianismo, enquanto os bons não somente o toleraram mas chegaram até mesmo a protegê-lo. Onde estaria o mal daquilo que somente os perversos combatem?
O outro erro de natureza não-jurídica das autoridades romanas era sua incoerência. Elas apontavam a defesa das antigas tradições como a principal razão para combater o Cristianismo. Porém, sua conduta, a permissividade de muitas de suas leis, bem como sua tolerância e descaso com a lassidão dos costumes demonstravam que eles próprios eram os que mais atuavam contra a tradição dos antepassados que fingiam proteger quando condenavam os cristãos. Por outro lado, eram exatamente os cristãos os cidadãos que, com sua conduta, estavam protegendo o império do absoluto caos moral e social.
A única tradição que as autoridades romanas, de fato, defendiam, era justamente aquela na qual os antigos haviam incidido em erro, a saber, a adoração dos deuses. Os bons costumes de seus antepassados, porém, os romanos há muito haviam sepultado.

Pierre Pierrard destaca esse aspecto da Apologia vendo nele não só uma manifestação contrária à idolatria reinante no culto pagão, mas também algo do espírito moralista estrito de Tertuliano. Assim se expressa o escritor católico:
E o que não dizer desse Apologeticum, em que a erudição do escritor fortalece a veemência de sua fé para combater a idolatria? Mas já nesta obra revela-se o rigorismo moral de Tertuliano, a impossibilidade que ele experimenta de partilhar a vida de uma cidade ainda pagã.
Além de destacar os erros dos magistrados especialmente na esfera jurídica, a Apologia de Tertuliano apresenta uma característica singular que chama a atenção dos estudiosos. Trata-se do fato de seu autor atacar os acusadores devolvendo as acusações e atribuindo a eles próprios a prática dos crimes que apontavam nos cristãos. Segundo Tertuliano, se os cristãos praticassem os atos terríveis descritos por seus inimigos, então eles, os crentes, não seriam seus inimigos, mas sim companheiros e cúmplices no pecado.
Hammann realça essa característica distintiva da Apologia dizendo que “Tertuliano não se contenta com aparar os golpes, mas passa à ofensiva.” Ele prossegue: O Apologeticum, de que já falamos continua sendo uma de suas obras primas. Composição estruturada e possante: ‘Não refutarei apenas as acusações levantadas contra nós; farei com que elas se voltem contra seus próprios autores.’ Raramente um discurso de defesa cristão conhecera semelhante precisão de argumentos jurídicos, semelhante rudeza de ironia, semelhante aspereza de lógica, onde os argumentos são desferidos como golpes certeiros, as fórmulas marteladas, os dilemas inelutáveis, sem concessões à posição dos poderes públicos ou dos filósofos. Para ele não basta convencer o adversário: arrasa-o, pisa-o, humilha-o. Existe crueldade neste homem. É assim, aparando os golpes de seus adversários e desferindo outros tantos contra eles que o ardoroso pai da igreja constrói a defesa de sua fé e dos seus irmãos. Nele a igreja tem em suas fileiras um corajoso soldado. Tertuliano oferece ao Cristianismo poderosos argumentos filosóficos, morais, históricos, teológicos e, principalmente, jurídicos. Com esses últimos, ele tocava na menina dos olhos dos romanos, tradicionalmente conhecidos como o povo cuja cultura valorizou, lapidou e protegeu o direito como uma das suas mais preciosas jóias. Nas mãos de Tertuliano, essa jóia é usada para ornamentar ainda mais a já rica e formosa causa do Cristianismo.

3. AVALIAÇÃO CRÍTICA E RELEVÃNCIA
O que há de positivo e negativo na Apologia de Tertuliano? É preciso confessar que muito pouco nessa obra é passível de crítica negativa. Aliás, mesmo os mais eminentes estudiosos tendem sempre a exaltá-la, raramente depreciando-a, nem mesmo em um aspecto sequer.
Talvez o que pode ser apontado como traços que causam um certo desconforto, mesmo no leitor mais simpático ao texto, seja a ausência de serenidade que permeia toda a obra e a presença de um número pequeno de sofismas pouco convincentes e de utilidade duvidosa.
Quanto à notável aspereza de Tertuliano, milita em seu favor o fato de atuar como advogado no calor de um debate em que a vida de seus clientes está em jogo. Sob esse ponto de vista, a serenidade torna-se até algo indesejável. Já no tocante ao uso que em certa medida faz de raciocínios capciosos, contornando alguns aspectos da realidade para induzir as autoridades a acatar seus motivos, isso realmente parece inútil e até prejudicial.

Quando, por exemplo, Tertuliano se desvia do fato de que os cristãos eram condenados não pelas acusações que lhe eram feitas, mas por não obedecerem as ordens dos tribunais no tocante à adoração de César, age como quem finge não ver aquilo que vai contra seus interesses. Ora, qualquer juiz experiente perceberia a astúcia presente aqui para induzi-lo ao erro. Essa percepção, por sua vez, poderia indispor o julgador ainda mais contra os cristãos.
Se, porém, existem uns poucos detalhes na Apologia passíveis de censura, a obra é abundante em elementos dignos de exaltação. Primeiro, é inegável que a Apologia se destaca por seu valor como fonte de informações sobre a situação dos cristãos no século 2. Detalhes sobre as acusações que eram levantadas contra eles, dados acerca do seu modo de vida e impacto sobre o povo, indícios relativos à sua expansão e penetração na sociedade, enfim, todo o quadro histórico e social dentro do qual o cristianismo daqueles dias se desenvolveu recebe cores mais vivas a partir das informações detectadas na Apologia.

À parte, porém, de seu valor histórico, a obra se constitui em valiosa contribuição à medida que revela o método, o conhecimento e a coragem de seu autor. Tertuliano mostra que o debate filosófico, com vistas à defesa da fé, ganha muito mais força quando o “advogado” do Cristianismo se coloca por inteiro na discussão. Com o cartaginês aprende-se a lutar de modo apaixonado contra o erro, a mentira e a injustiça. Aqui os modernos apologetas devem ter em Tertuliano um modelo. Isso porque a crítica atual contra o que ameaça a igreja, quando existente, é fria, desinteressada e monótona. Por isso, não é convincente e os desvios se multiplicam sem uma voz forte que os denuncie. Sem dúvida os guardiões da Sã doutrina, nesse aspecto, têm muito que aprender com o teólogo africano.
Na Apologia também é relevante a determinação do autor em se levantar contra um sistema jurídico em muitos aspectos falho, o qual, por conta de seus defeitos, traz dano à ordem social, favorecendo o que é reprovável e punindo os amantes da virtude. Tertuliano não se intimida diante desse sistema ameaçador. Ele o enfrenta com destemor, sem poupar palavras, chegando ao ponto de censurar, reprovar e provocar, num tom capaz de intimidar mesmo a mais prepotente autoridade. Essa postura corajosa, totalmente oposta à resignação, ao recolhimento tímido e ao receio de punição se constitui também num modelo a ser seguido pelos defensores atuais da verdade.
Inúmeros pastores, observando os movimentos do cenário político e jurídico moderno, tendem a se recolher assustados, acovardando-se diante das ameaças de processos judiciais contra a igreja que eventualmente rejeita homossexuais ou exclui da comunhão os membros que vivem em pecado obstinado. Essa intimidação, percebida pelos adversários e tão proveitosa a eles, deve ser substituída pela valentia e audácia de Tertuliano. Com ele aprendemos, para desespero dos maus, que a verdade jamais deve se curvar, mas sim enfrentar o que se opõe a ela, fazendo o adversário recuar. Aliás, o próprio Paulo transmitiu ao tímido Timóteo essa lição ao lembrá-lo que “Deus não nos deu espírito de covardia” (2Tm 1.7, NVI) . Portanto, tanto a história (no exemplo de Tertuliano) como a Sagrada Escritura (no ensino de Paulo) encorajam uma postura mais varonil do que aquela que temos visto nos cristãos modernos em face das eventuais ameaças do poder público contra a igreja que repudia o pecado.
Exigir o reconhecimento da legalidade de nossas medidas e processos disciplinares, requerer a punição daqueles que perturbam nossa paz e desrespeitam nossos valores, fazer frente e manifestar-se formalmente contra normas e decisões do Estado que, porventura, militem contra a Escritura são algumas sugestões acerca do que os homens de Deus de hoje poderiam fazer inspirados pelo exemplo de Tertuliano.
Um outro elemento extremamente positivo no teólogo africano é a certeza que tem quanto ao fato de a igreja ser um fator de inibição da proliferação do mal na sociedade. O conceito de Tertuliano acerca da igreja mostra-se aqui elevadíssimo. Sem ela, o mundo tão mal seria pior. Sua influência, suas preces, seus apelos, seu crescimento, sua simples presença refreiam a injustiça, o sofrimento e a catástrofe social. Em Tertuliano vê-se que isso ocorre simplesmente porque a igreja difere do mundo, está em desarmonia com ele, navega contra o seu curso, preservando solitária os bons costumes e tudo que é certo, decente, justo e proveitoso. Só assim essa presença inibidora torna-se possível. Só por ser diferente é que ela é sal, impedindo a total deterioração da terra.
Eis um outro elemento presente na Apologia de Tertuliano que deve ser resgatado pela igreja moderna. Nós temos o papel de preservar o mundo de um declínio moral ainda mais acentuado, mas não podemos fazer isso unindo-nos ao mundo ou buscando sua aprovação e aplausos. O “segredo” para conter o esgarçamento do tecido moral da sociedade está justamente em se opor às tendências naturais dessa mesma sociedade. Para beneficiá-la como amigos, temos de agir como seus inimigos; para produzir nela algum bem-estar, temos de provocar nela um profundo mal-estar; para ajudá-la temos de feri-la. Se agirmos de modo oposto, buscando influência e grandeza, serão justamente a influência e a grandeza os bens maiores que perderemos.
Finalmente, é notória em Tertuliano a capacidade de ver força e vitória mesmo diante das mais convincentes aparências de fraqueza e derrota. Ele vislumbra exatamente no sangue dos mártires a fonte de multiplicação e avanço da igreja. Ao contrário do que podia parecer, a perseguição dos cristãos não era sinal de sua debilidade, nem era o prelúdio ou o instrumento de sua extinção. Tertuliano mostra-se seguro no tocante ao triunfo da igreja mesmo quando ela cambaleia sob os golpes incessantes da crueldade.
Nutrir a certeza de que a igreja, haja o que houver, é vitoriosa se constitui numa excelente fonte de ânimo para o ministro da Palavra. De fato, essa certeza era uma das razões da ousadia do teólogo africano. Ainda que hoje, especialmente no ocidente, os golpes mais severos contra a igreja não sejam procedentes da perseguição cruel, é fato que aqui e agora ela também cambaleia sob os golpes sutis da mediocridade teológica, do desinteresse e ausência dos crentes, da banalização do culto, da insuficiência financeira (especialmente no caso das pequenas comunidades locais) e da necessidade de pessoas qualificadas para a realização dos deveres e superação dos desafios que se impõem.
Esse quadro, tão comum nas igrejas que não se rendem aos atrativos do evangelho fácil, pode levar o ministro de Deus e os crentes em geral à conclusão de que a igreja é irremediavelmente fraca, uma comunidade pequena condenada a uma vida talvez longa, porém sem expressão. É justamente nesse ponto que o crente deve aprender com Tertuliano e com a lição da história que ele captou com maestria: a igreja reduzida a nada, exatamente por ser nada se torna útil nas mãos de Deus que, como mostra a criação do universo, usa o nada como matéria-prima.
Todo o quadro obscuro e desalentador no qual muitas igrejas modernas vivem por serem fiéis à verdade deve ser visto apenas como um tempo de prova, um período no qual Deus está fazendo seus membros amadurecerem na fé e na perseverança, uma fase da qual tirarão lições preciosas e da qual sairão mais fortes. Tal como nos dias de Tertuliano, os gemidos da igreja são os gemidos de quem dá à luz; e os filhos advindos desse tempo de dor são a fortaleza, a fé, a humildade, o temor e a dependência de Deus. Tertuliano estava certo: o sangue dos cristãos é semente… e suas lágrimas também!

CONCLUSÃO:
Philip Schaff referiu-se a Tertuliano e sua Apologia dizendo que “a causa da verdade e da justiça nunca encontrou um defensor mais forte e destemido diante do poder despótico e das chamas ardentes da perseguição do que o autor deste livro”.
À luz do que foi visto nesta monografia, a opinião se Schaff parece não ser exagerada. Foram analisados ao longo do trabalho alguns dos principais argumentos de Tertuliano dirigidos aos magistrados que promulgavam sentenças condenatórias injustas contra os cristãos. Dessa análise, corroborada pelo parecer de eruditos ilustres, pôde-se conhecer o raciocínio agudo e penetrante do cartaginês, bem como a invencibilidade da maior parte de suas teses. Também algo do espírito de Tertuliano foi apontado ao longo da monografia que, em alguns momentos, realçou a presença do coração do autor em sua obra, ou seja, a bravura e até mesmo insolência do apologista, tão eloqüentes quanto suas palavras. Disso também se deduz a exatidão do parecer de Schaff.
Sendo uma figura tão singular que por essa razão produziu uma obra como a Apologia, também singular, era de se esperar que Tertuliano tivesse algo a oferecer, como advogado, à igreja moderna. Isso também este trabalho realçou. Mostrou-se como Tertuliano pode ser útil para o cristão contemporâneo, tanto pelo seu exemplo de coragem como pela sua atuação ofensiva e sua visão nobre da igreja.
A verdade sempre está sob ataque. Jamais os ímpios lhe deram descanso. Por isso, ela sempre precisa de defensores capazes, ousados e destemidos. Em Tertuliano, os ministros da verdade têm o modelo do soldado eficaz. A soma de seu preparo intelectual à sua alma apaixonada dá a receita do forte combatente cuja espada contra a injustiça nunca volta para a bainha sem deixar os inimigos feridos e prostrados.

REFERÊNCIAS
CAIRNS, Earle E. O cristianismo através dos séculos: Uma história da igreja cristã. São Paulo: Vida Nova, 1984.
GEISLER, Norman. Tertuliano. In: Enciclopédia apologética: respostas aos críticos da fé cristã. São Paulo: Vida, 2002.
GONZÁLEZ, Justo L. Uma história ilustrada do cristianismo. São Paulo: Vida Nova, 1980. 10 v.

HAMMANN, A. Os padres da igreja. São Paulo: Paulinas, 1985.

OLSON, Roger. História da teologia cristã: 2.000 anos de tradição e reformas. São Paulo: Vida, 2001.
PIERRARD, Pierre. História da igreja. São Paulo: Paulinas, 1982.
SCHAFF, Philip. History of the Christian church. Grand Rapids: Eerdmans, 1987. 8 v..